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A Música "Da Ponte Pra Cá"...

 

...é lugar comum entre egressos, bolsistas ou não. Porém, e há sempre um porém... A identificação dos bolsistas com a letra é visceral. Material e visceral. "O mundo é diferente" pra quem trafega em média duas horas pra chegar até a incubadora de privilégios que é a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sob “Mesmo céu, mesmo CEP”, nos extremos sul, norte, leste ou oeste do mapa, ou nas vilas e comunidades que desafiam o processo de gentrificação da região central, os filhos da classe trabalhadora resistem sob inúmeras condições adversas e estranhas aos bem nascidos e à narrativa dominante entre os muros da PUC-SP. A leitura da canção desde o ângulo dos bolsistas e as intempéries a que estão expostos durante a vida acadêmica na PUC-SP torna-se inevitável.


Versos como “Eu nunca tive bicicleta ou videogame / Agora eu quero o mundo igual Cidadão Kane” remetem às expectativas que perpassam o imaginário dos ingressantes de nossa classe em uma faculdade de elite como a PUC-SP. Entretanto, a possibilidade da melhoria de condições materiais não dilui da memória dos bolsistas o espectro da sorte cruel que outros muitos - antes vizinhos, colegas de escola, parentes, com quem as memórias mais doces da infância foram divididas – amargam.

“Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem / Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém / Quantos caras bom, no auge se afundaram por fama / E tá tirando dez de havaiana? / E quem não quer chegar de Honda preto em banco de couro / E ter a caminhada escrita em letras de ouro?”

 

O dia a dia na universidade aos poucos evidencia as sólidas diferenças que perpassam e distinguem a vivencia de alunos bolsistas e pagantes. A coexistência com o público cativo da PUC-SP não é de forma alguma acolhedora. Por trás da propagandeada máscara afável do progressismo escondem-se as contradições de classe. “Nós aqui, vocês lá, cada um no seu lugar / Entendeu? Se a vida é assim, tem culpa eu?” A retórica da “democracia puquiana”, tida como elemento histórico na PUC-SP, fomenta entre a chamada comunidade puquiana o fetiche por um determinado estereótipo de pobreza, que causa desagrado aos bolsistas. “Antes de tudo eu quero dizer, pra ser sincero / Que eu não pago de quebrada mula ou banca forte / Eu represento a Sul, conheço louco na Norte / No 15 olha o que fala, Perus, chicote estrala”.

 

Os alunos pagantes da pontifícia ocupam o lugar socialmente designado a eles. Desde a infância foram educados e lapidados para a inconteste e segura continuidade dos estudos. Cursos de línguas, viagens, disciplina para os estudos, boa alimentação, bons contatos... Para os filhos de classes abastadas, como os pagantes da PUC, o ingresso no ensino superior é um destino lógico, certeiro e bem condicionado.

Entre os bolsistas, por vezes os primeiros de sua família, comunidade, bairro, a ingressarem no ensino superior, a universidade é hostil. Contudo, a despeito de todas as dificuldades, comprovadamente, os bolsitas mantém um rendimento acadêmico superior ao dos alunos pagantes. “Da ponte pra cá, antes de tudo é uma escola / Minha meta é dez, nove e meio nem rola.” Sacrifícios de toda ordem são exigidos dos bolsistas e suas famílias para a viabilização da graduação, por isso, contrariando o discurso das atléticas e falas pouco contempladoras dos oradores nas milionárias formaturas, esse não é período mais feliz de nossas vidas. Graduação pra nossa classe é responsabilidade, é a chance de mudar os rumos de toda uma família. “Meio ponto a ver, hum e morre um / Meio certo não existe, truta, o ditado é comum”.


Como “Cada favelado é um universo em crise” ao mesmo tempo em que a patente desigualdade entre a realidade experimentada pelos bolsistas e o estilo de vida dos pagantes é insultante, essa dura constatação é um terreno fértil para a  criação da consciência de classe entre os bolsistas. “Outra vez nós aqui, vai vendo / Lavando o ódio embaixo do sereno / Cada um no seu castelo, cada um na sua função / Tudo junto, cada qual na sua solidão.” Nesse árduo e doloroso processo, os laços da solidariedade de classe entre os bolsistas são reforçados. Entre os bolsistas há, comumente, uma cultura de identidade, compreensão e apoio – que reproduz os costumes das famílias pobres das periferias, zonas rurais, dos colegas da rua, dos vizinhos de quintal e de parede e meia - difícil de ser cultivada entre aqueles que foram educados sob os princípios mais fiéis ao individualismo. “Não adianta querer, tem que ser, tem que pá / O mundo é diferente da ponte pra cá / Não adianta querer ser, tem que pra trocar.”

Quando essa cumplicidade entre os bolsistas se traduz em resistência organizada, está criado o potencial para que a insatisfação com as condições a nós impostas se consubstanciem em luta pela nossa classe: “Pros moleque da quebrada / Um futuro mais ameno, essa é a meta”! 

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